terça-feira, 14 de maio de 2013

Vidas Amargas, 1955, Elia Kazan



Vidas Amargas
★★★★Estados Unidos da América, 1955, cor, 115 min.
Elia Kazan


Vidas Amargas, com direção de Elia Kazan e baseado no bestseller 'A Leste do Éden' do escritor americano John Steinbeck 
é um dos maiores exemplos de romances transformados em grandes obras cinematográficas. Além disso, a obra é a primeira da tríade inesquecível de filmes que criaram o legado de James Dean no cinema e a primeira indicação póstuma ao Oscar. James Dean brilha como uma verdadeira estrela nessa obra, um dos três filmes que teve papel de destaque antes de morrer apenas com 24 anos. 

O título e o enredo do filme fazem referência a uma das histórias mais antigas do mundo encontrada no livro do Gênesis, se trata da história de Caim e Abel onde Caim mata o irmão Abel e é exilado em uma terra ao 'leste do paraíso. Na primorosa adaptação de Elia Kazan para o livro de John Steinbeck podemos encontrar diversos elementos similares na história, mas de certa forma mudando a história da bíblia, já que não é uma história de 'bem e mal'.


O filme se passa no início do envolvimento dos Estados Unidos na primeira guerra, no vale de Salina, em Monterey, na Califórnia e mostra a disputa do jovem Cal Trask (James Dean) com seu irmão Aaron (Richard Davalos), pelo amor do pai, Adam Trask (Raymond Massey), fazendeiro e colhedor de alfaces. Os dois cresceram sem a mãe, acreditando na história contata pelo pai de que a mãe morrera, entretando Cal descobre que a mãe está viva. Mas a história centra-se apenas na briga entre pais e filhos, diferente do livro que decorre gerações de duas famílias da Guerra Cívil à Primeira Guerra Mundial. Kazan excluiu boa parte da obra para gerar maior dramaticidade demonstrando uma época onde a adaptação não significava necessariamente contar a exata história original.

Os irmãos, além de disputarem o afeto do pai, disputam também o amor de Abra (Julie Harris), que oficialmente é a namorada de Aaron, mas prefere o jovem e misterioso Cal. O pai, católico fervoroso, tem Aaron como o filho bom e Cal como filho mal, já que este lhe representa a imagem da mãe, mulher que abandonou a família para se livrar de uma vida limitada nas mãos do marido em um sítio, para ganhar a vida no próprio negócio, um prostíbulo em Monterey, próximo de Salinas, onde o rancho se localiza. Lembrando que tudo isso ocorre em uma América rural de 1917. Não por simples coincidência, os nomes dos personagens são semelhantes aos personagens bíbicos de Adão e seus filhos Caim e Abel. Cal, assim como Caim na bíblia é consumido pelo ciúmes devido a preferência do pai pelo filho exemplo, mas ele também é guiado pelo desejo de melhorar a vida da família e enfrentar a verdade que seu pai e seu irmão tem medo de encarar. 


Apesar de profundo e frequentemente teatral, é nítida a habilidade do diretor Elia Kazan como cineasta. As composições de Kazan são tão significativas quanto as atuações. É possível dizer que no livro de Steinbeck, Kazan encontrou reflexos de sua própria relação conturbada com o pai, ajudando a dar ao filme grande intensidade. Diferente do que há na bíblia, baseada em concepções religiosas e em idéias fixas sobre o bem e o mal, Vidas Amargas propõe uma ação psicológica das complexas relações humanas, onde as pessoas e as histórias podem mudar.


 A estréia de Vidas Amargas em março de 1955 no Astor de Nova York
















terça-feira, 7 de maio de 2013

Mala Noche, 1985, Gus Van Sant



Mala Noche
★★★★
Estados Unidos da América, 1985, 16mm, pb, 75min
Gus Van Sant

O filme de estréia de Gus Van Sant preescreveu alguns dos principais conceitos do cinema independente norte-americano, que sempre destacou a importância do roteiro e dos atores, deixando de lado outros aspectos importantes envolvidos na produção de um filme. Gus Van Sant trabalhou para uma agência de publicidade para conseguir financiar o filme e com 25 mil dólares, dirigiu o filme independente Mala Noche em 1985. Rodado em 16 mm e em p&b, o filme, baseado no livro de poe­mas de Walt Curtis é centrado na figura do jovem Walt Curtis (Tim Streeter) dono de uma mercearia decaída no subúrbio de Portland, Oregon, que se apaixona por Johnny (Doug Cooeyate), um imigrante mexicano clandestino.


O elenco formado por atores amadores, a iluminação precária e as imagens nem sempre impecáveis, não diminuem a qualidade do filme. Muito pelo contrário, o filme nos pega em cheio pela liberdade narrativa apresentada. Somos introduzidos ao filme com a frase 'If you fuck with the bull, you get the horn' que traduzindo para o português, literalmente, podemos interpretá-la como 'se você fode com o touro, você é chifrado', em seguida ouvimos o desabafo de Walt sobre a atração pelo jovem mexicano Johhny, que está sempre em companhia do seu amigo Roberto, também imigrante. Com isso, Gus Van Sant acompanha com maestria as tentativas de Walt em seduzir o rapaz, contudo a atração se torna um amor obsessivo não correspondido. Johnny, por sua vez, não é homosexual, mas é incapaz de frear seu admirador, foge de Walt durante o dia, mas a noite vai para a cama com ele. Trata-se de uma tensão sexual não resolvida que impulsiona as tentativas frustradas de Walt. Curiosamente, as únicas imagens coloridas do filme se dão quando Walt filma Johnny e seus amigos andando pelas ruas de Portland, ou seja, é no olhar do personagem sobre seus amigos que a vida tem cores.


É impressionante como os protagonistas portam-se à vontade diante da câmera, fortalecendo as aspirações e conflitos que carregam consigo: da obsessão, atração físisca à incomunicabilidade provocada pelas barreiras linguísticas e sociais, mas principalmente pela forma como cada um deles experimenta sua sexualidade. 
Voltando à frase inicial, pode-se concluir que Johnny é o touro e Walt o 'chifrado'. Este nunca terá seu desejo contemplado com reciprocidade. Um aspecto curioso focado pelo filme é que Van San não esconde as relações complexas que se desenrolam no convívio entre os personagens e o resultado das mesmas, ou seja, as inquietações, tristezas, alegrias, sofrimentos e desesperos provocados principalmente pelo personagem principal. Van Sant nos torna cúmplices de tais situações, entretando não nos induz soluções, assim como a complexibilidade do amor.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Um Artista da Fome - Franz Kafka

O conto 'Um Artista da Fome' de Franz Kafka, publicado em 1922,  relata a vida de um artista que ganha a vida a jejuar. O artista não jejua apenas para atrair o público em suas performances, para ele jejuar significa vida e morte. O artista da fome é vigiado por uma grande quantidade de espectadores implacáveis que contam os dias de jejum, que não entendem a natureza artística de jejuar. 

 Entretanto, quando suas atuações deixam de ser populares, o artista é abandonado dentro de suas grades e se transforma num  pobre-diabo. Trocado por uma pantera que foi colocada em sua jaula, o artista da fome leva o seu desejo de jejuar até o limite passando desapercebido pelos espectadores que se esquecem de contar os dias de jejum. Para o artista o ato de jejuar se faz necessário, quando está agonizando admite que jejua porque nunca conseguiu encontrar um alimento que o satisfizesse. Sua arte é um modo de existir, e a perfeição nessa arte - ou seja, o ponto em que fica satisfeito - significa a morte.

O artista da fome pode ser comparado ao próprio Kafka, que na época em que compôs este conto estava com o organismo fragilizado por uma forte tuberculose e laringite e se alimentava com muita dificuldade.
Além da projeção pessoal, Kafka trata de conceitos atuais, como a mudança dos gostos e hábitos da sociedade. Assim como o artista da fome deixou de ser uma atração, a sociedade moderna define novos objetos que aos nossos olhos pareçam aceitos. kafka descreve o modernismo.

 
LEIA - Um Artista da Fome e A Construção (Franz Kafka)

Um Artista da Fome e Quadrinhos:




TítuloDESISTA! E OUTRAS HISTÓRIAS DE FRANZ KAFKA (Conrad Editora) - Edição especial
Autores: Franz Kafka (texto original) e Peter Kuper (adaptação e arte).
Preço: R$ 22,00
Número de páginas: 64
Data de lançamento: Março de 2008

O Livro 
'Desista! E Outras Histórias de Franz Kafka' reúne contos de Kafka em versões adaptadas para os quadrinhos. 
O norte-americano Peter Kuper, autor da adaptação, traduziu em imagens o tom absurdo das situações criadas por Kafka (1883-1924). Trata-se, evidentemente, de uma leitura pessoal dele mostrada na forma de imagens.


No conto "Desista!", destacado no título e na capa do álbum, um homem atrasado pergunta a um policial "qual é o caminho". Acuado, ouve um sonoro "desista!" como resposta. O atraso do homem é caracterizado com um relógio num dos olhos. A atitude agressiva do policial é simbolizada com um cano de revólver no lugar do nariz. É esse o tom das nove histórias da obra, ora mais acentuado, ora menos. Imagem e texto procuram se harmonizar por meio dos toques surreais. O resultado é um incômodo, muitas vezes acentuado pela crítica à condição humana. 

Talvez o caso mais contundente desse desconforto seja "Um Artista da Fome", o mais longo do álbum (dez páginas). Um jejuador profissional, que se apresenta em público, começa a perder o interesse da platéia. Tenta se apresentar num circo, mas a cena se repete. Como de costume numa obra kafkiana, a situação em si dá margem a mais de uma leitura. Mas qualquer interpretação esbarra num certo desconforto. Os nove contos do álbum –escritos por Kafka nas duas primeiras décadas do século 20- não são o primeiro passeio de Kuper pelo mundo kafkiano. 


Ele adaptou também "A Metamorfose", trabalho feito após "Desista!". A versão dele para o romance foi lançada pela Conrad em 2004. Foi um bom negócio para a editora. A obra foi incluída no PNBE (Programa Nacional Biblioteca na Escola), do governo federal. O programa compra obras literárias e em quadrinhos e as distribui a escolas do ensino fundamental. Resultado: a obra esgotou. "Desista!", assim como outras adaptações literárias que vêm sendo produzidas, tem tudo para seguir o mesmo caminho. Melhor garantir antes que o governo a descubra.

Fonte - 
http://blogdosquadrinhos.blog.uol.com.br/

quarta-feira, 6 de março de 2013

Quadrinhos - Genesis, 2009, Robert Crumb


Nome original: The Book of Genesis
Nome brasileiro: Gênesis por Robert Crumb

Nota: ★★★★★
Publicação: 2009

Licenciador e autor: Robert Crumb
Editora: Conrad
Categoria: Álbum de Luxo
Gênero: Alternativo
Número de páginas: 226
Formato: (21 x 28 cm)
Produto: Preto e branco/Capa dura

Gênesis se trata da reprodução fiel e ilustrada de cada palavra do texto original do primeiro livro da bíblia referente a criação do universo; os sete dias da criação; Adão e Eva; Noé, toda sua linhagem e tantas outras histórias antigas que há nele. Isso mesmo, os 50 primeiros capítulos do Gênesis foram adaptados impecavelmente para os quadrinhos por um dos maiores ícones do underground. Para isso, o mestre desenhista Robert Crumb no ápice da sua habilidade artística - como ele mesmo disse na introdução do livro - fez uma pesquisa profunda da obra que se inspirou à interpretar e que em alguns trechos se aventurou em pequenas interpretações próprias, mas apenas para deixar alguns termos bíblicos mais claros. Contando com a ajuda de amigos, profissionais e estudiosos, Crumb retratou com o máximo de fidelidade tanto o texto literário quanto a realidade da época. Foi um árduo estudo de quatro anos sobre a época, costumes e interpretação bíblica.
Uma obra bíblica ser interpretada e ilustrada por um indivíduo descrente de qualquer religião gerou um contraste, ocasionando uma certa polêmica na sociedade. Enquanto os religiosos fervorosos trucidam a obra, os fãs de quadrinhos e devotos de Robert Crumb se deleitaram com o trabalho. Independente à crítica religiosa, é uma obra magnífica e uma verdadeira relíquia no mundo dos quadrinhos. Diferente dos outros trabalhos de Crumb, não é caracterizado pela imoradilade, perversão, ironia e sarcasmo, mas esta obra, em particular, se destaca das outras pela intensa pesquisa realizada, que se faz perceptível durante a leitura.
Crumb disse que a ideia de representar Deus dessa forma gnóstica veio através de um “poderoso sonho” que teve no ano 2000 “no qual vi Deus e ele tinha essa aparência”

Em um trecho de entrevista concedida por Robert Crumb a Fernando Eichenberg em Paris e publicada pela revista “+ Soma” (disponível em http://www.maissoma.com/2010/2/26/robert-crumb), Crumb responde a seguinte questão:

Você se define como gnóstico?

Gnóstico é alguém que busca o conhecimento de Deus. Sou alguém em busca desse conhecimento. Não tenho a pretensão de dizer que possuo algum conhecimento, mas o procuro.uando você medita, tenta compreender a natureza da realidade, da nossa existência, da vida. Tenta unificar o todo da vida. Isso é muito gnóstico. Existe um texto gnóstico descoberto nos anos 1940, chamado “Nag Hammadi”, que é muito interessante. Fui bastante reprimido. A Igreja cristã e outras não gostavam de gnósticos – é algo muito vago, solto, sem doutrina suficiente. Os primeiros católicos se doutrinaram muito rapidamente. Queriam verdades absolutas, e todos que não concordavam com essas verdades eram excomungados. Por volta de 300 d.C., um bispo decidiu que todos que não reconhecessem Jesus como a encarnação de Deus não eram cristãos. Foi aí que começou o conflito em torno da heresia e dos hereges, de quem discordava da Igreja, milhões de pessoas perseguidas ao longo dos séculos. Ser gnóstico é não se limitar e não ter doutrinas. É diferente de ser agnóstico. Agnósticos duvidam da existência de Deus. Não são exatamente ateus, mas é um jeito de dizer “isso não é comigo”. Mas os gnósticos são interessados e praticam essa busca, na forma de meditação.

Você medita?

Sim, tento meditar todos os dias. Às vezes estou muito ocupado e não consigo, mas tento meditar todos os dias. É algo muito benéfico e útil.

O produto final elaborado pela editora Conrad ficou impecável, além da capa dura de luxo, o livro traz comentários do próprio autor sobre os capítulos ilustrados, com detalhes sobre a sua interpretação dos textos bíblicos e notas sobre a tradução para ajudar a esclarecer alguns trechos da tradução da obra original em inglês para o português.





segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Livro - Entrevistas com Arquitetos, Hanno Rauterberg



Finalmente terminei a leitura desse livro que esteve guardado na minha estante durante tanto tempo. O livro interroga 19 dos mais célebres arquitetos com assuntos imprescindíveis a profissão, se tornando uma verdadeira fonte de inspiração para os aprendizes mortais -
não por acaso é o primeiro livro sobre arquitetura que leio após estar oficialmente graduada.
O alemão Hanno Rauterberg, renomado crítico de arquitetura, conversa com os ilustres arquitetos da atualidade sobre o estado da arquitetura hoje em dia, suas aspirações, as influências em sua obra e se seus projetos podem mudar o mundo. Entre os entrevistados estão nomes de diferentes movimentos e lugares no mundo, como por exemplo: Norman Foster, Cecul Balmond, Peter Eisenman, Frank gehry, Zaha Hadid, Daniel Libekind, Oscar Niemeyer, entre outros.
A Introdução do livro, intitulada: 'Modernismo Digital, porque a arquitetura é mais popular do que nunca' faz um apanhado de questões importantes que aparecem em muitas das entrevistas: 'Seus projetos acrescentam o quê? Ainda existem Vanguardas? E será que podem transformar o mundo com sua arquitetura? Elas são apenas grandes esculturas, algo apenas para os de nível educacional elevado? Ou o que os visionários sonhavam no início do século 20 é realmente possível? Será que os arquitetos podem sensibilizar um grande número de pessoas, renovar cidades e até mesmo se tornarem um símbolo de mudança?'. As questões não são técnicas ou estéticas, elas abrangem sobretudo a  questão social - Para que estamos construindo?
Raunterberg ousa algumas provocações aos arquitetos em alguns momentos, como quando diz para a iraniana Zaha Hadid: 'The Times chamou-a de a mais odiada arquiteta da Inglaterra'. Quando diz que os prédios de Zaha 'têm algo preescritivo, mesmo que pareçam flexíveis', a iraniana parece perder a calma quando diz 'Você está querendo discutir?... Você provavelmente não gosta da minha arquitetura.'

É
um livro interessante para compreendermos questões indispensáveis à profissão, além disso, sem perder o profissionalismo e fugir de assuntos relacionados à arquitetura, o autor trás o lado mais humano dos arquitetos. Entre as respostas mais surpreendentes temos a de Oscar Niemeyer que ao ser perguntado se ainda existia alguma coisa que desejasse na vida, diz:
"Eu gostaria de parar de falar de arquitetura. Eu preferia falar sobre literatura, mulheres e ciência. Se me fosse concedido um desejo, então que todo mundo fosse igualmente próspero, por favor. que todo mundo fosse feliz. Atualmente, o mundo me parece terrivelmente desajustado. Há insatisfação por toda parte; muitas pessoas não acreditam no futuro; o dinheiro reina supremo. Até memso por essa única razão, a arquitetura não pode ser a resposa. A arquitetura não é importante, o mundo é importante, e nós temos que mudá-lo. Esse é um mundo de merda."

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Documentário - Santiago, João Moreira Salles, 2007


Santiago (Santiago)
★★★★★
Brasil, 2007
João Moreira Sales


Em 1992, o cineasta João Moreira Salles, irmão de Walter Salles e filho do banqueiro e ex-ministro Walther Moreira Salles, empenhou-se em fazer um documentário sobre Santiago Badariotti Merlo, um mordomo, de origem italiana, dono de uma memória prodigiosa e vasta cultura que guardava nas lembranças o brilho das festas e recepções oferecidas pelo pai do realizador. Santiago trabalhou na casa da Gávea, a mansão de uma família muito rica e influente, onde o herdeiro dos Salles morou até os 20 anos e que hoje abriga o Instituto Moreira Salles, uma sede de referência para a fotografia e para a música no Rio de Janeiro.

O realizador percebeu a singularidade do homem já aposentado que viria a ser o personagem de seu filme em 1992. Santiago vive em um estreito apartamento do Leblon, no Rio de Janeiro, distante do esplendor dos luxuosos banquetes e grandes concertos que participara em um passado remoto. No seu humilde aposento leva uma vida solitária entre as 30 mil páginas que escreveu relatando os dramas e vidas de mais de 500 anos de nobrezas e dinastias de todo o mundo.

No mesmo ano, João Salles abandona o filme e só o retoma em 2005, entretanto, agora é ele quem se torna o protagonista. O filme é narrado em primeira pessoa, na voz do irmão, Fernando Moreira Salles e exibe todo o processo usado para fazer o filme em 1992. João explica detalhadamente como planejava construir o documentário apontando a câmera para Santiago e para a mansão onde o realizador cresceu. O documentarista descontruiu seu proprio documentário, revelando todos os cortes e desmascarando todos os seus mecanismos utilizados, sobretudo, como uma autocrítica do seu modo de conduzir o documentário década e meia atrás.

Em 2005, o resultado apresentado exprime a conscientização de um erro. Salles conseguiu retratar sua distância do antigo mordomo - ao que atribui suas inerentes posições de ex-patrão e ex-criado. O mordomo se apresenta como um personagem-objeto sempre ao fundo sendo constantemente manipulado no que dizer e como se posicionar. Toda essa errônea abordagem é explícita pelo diretor que usa o material completo que seria cortado na edição, os erros de Santiago durante as falas e  re-takes, enquanto a construção de seu material é questionada com a narração off feita pelo irmão, que indaga quanto à veracidade dos fatos que o documentário trás.

À vista disso, Santiago pouco se trata do ex-mordomo da família Salles. O documentarista trata do retrato de um erro, da consciência da perda de uma oportunidade única, já que não há mais como Salles reencontrar Santiago, que falecera logo depois das filmagens. Em 1992, quando teve a oportunidade, encarou-a com esteticismos e enquadramentos que quase perdiam Santiago ao fundo, não lhe dando a chance de expressar seus sentimentos e de ser ele mesmo na frente da câmera.

Santigo nunca foi o verdadeiro alvo da câmera, João Moreira Salles não procurava um personagem de seu passado para retratar, mas uma figura-chave que o guiasse para suas lembranças. O desejo de encontro com tudo que acontecera na casa da Gávea é buscado através do mordomo, um guia norteador que como ninguém, tinha vivo na memória um passado distante que jamais esquecera.




segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Memórias, 1980, Woody Allen


Memórias (Stardust Memories)
★★★★★
Reino Unido, 1980
Woody Allen
 
Criada a partir de 8½, a obra mais confessional de Woody Allen, Memórias desenvolve a história sobre um diretor à beira de um colapso nervoso, que em seus devaneios imagina variações para a sua complexa vida amorosa. É o filme mais maluco e imprevisível do cineasta, o que para alguns pode ser motivo para empurrar a obra ao segundo plano da filmografia de Woody Allen. O grande mestre das neuroses filmicas registra sob a fotografia admirável de Gordon Willis, um pouco de todas as preocupações do próprio diretor, lançando um olhar satírico e encarando o alto preço da fama.

A obra mais hermética de Allen não deixa espaço para simplificações habituais. Completamente desnorteada, incompleta e perturbada, esta obra menos conhecida do cineasta entretém e brinca com as suas origens, não dá atenção a narrativa cinematográfia, apresenta personagens que saem de cena sem mais nem menos e prova que a sétima arte não necessita de coerência, é um mundo de pura fantasia e ilusão imaginativa.


Não por mera coincidência em Memórias, Allen interpreta Sandy Bates, um cineasta famoso por suas comédias de sucesso que recebe com espanto a péssima recepção a seu primeiro trabalho dramático. Na vida real, decepcionado com a imprensa e com a apática recepção da Academia de Hollywood a seu primeiro filme dramático, o drama Interiores, Allen desenvolveu um roteiro ácido sobre a relação entre cineastas e jornalistas, assim como seu complexo relacionamento com o público. Um alienígena do espaço lhe diz "Nós gostamos dos seus filmes. Principalmente dos primeiros, os engraçados", e leva um tiro de uma fã perturbada. Sobre a noção de celebridade, Allen responde no livro de Eric Lax; 'Conversas com Woody Allen':
'Certo. Acontece uma porção de coisas estrangas quando você é uma celebridade. Quer dizerm não é que venha uma garota dizendo: "Me dá um autógrafo no meio seio esquerdo". Mas dizem: "Os russos estão prendendo pessoas em hospícios, você pode ajudar?". Ou: "Pode me ajudar com isto aqui?". E como eu já comentei com as pessoas, Memórias foi feito antes de matarem o John Lennon, porque eu senti que havia uma sensação ambivalente entre o público e a celebridade. O público adora os famosos, e por um lado é muito mais tolerante com os famosos do que eles merecem ou ganham. Por outro lado, o púlbico adora quando a celebridade é difamada, e se diverte dizendo: "Ah, você precisa ler o que fulano disse sobre esse filme. Crucificou o diretor". O púlbico tem um sentimento ambivalente, e era essa ambivalência que aquele cara maluco sentia pelo John Lennon, ou aquela pessoa louca sentia pela Jodie Foster. Eles mitificam a celebridade e são também perigosos.
 Memórias encanta desde a sequência inicial em um preto-e-branco pungente, claramente felliniana: um homem (Woody Allen) tenta  desesperadamente sair de um trem em movimento, impedido por um grupo de pessoas com fisionomias excêntricas. Partindo dessa cena, Allen brinca com as imagens e com uma espécie de metalinguagem ao mesmo tempo melancólica e irônica. É impossível tentar evitar as comparações com a realidade vivida pelo diretor, assim como não rir com os diálogos mais inspirados de sua carreira. O filme harmoniza uma crítica ácida ao sistema a um humor dos mais inteligentes e engraçados da obra de Allen.